Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Sagitário

 


A flecha que nascendo arremessaste

para o alto, para a frente, em dura reta

obedece ao tempo e à ordem de ir adiante.

Não esquece: segue sempre a seta, a seta.


Corre! A seta...

Corre!

Avança!


Pois se a natureza fez-te assim cindido,

homo-equino, num só corpo conformado,

foi para não te cansar de ter corrido

antes que tenhas tua meta alcançado.


Corre! A seta…

Corre!

A seta não espera.


Mas, porque a terra é esfera e gira e valsa

ao redor da estrela, estás de volta agora

onde outrora e tua flecha se perdera

no girar, quem sabe o alvo o tenha às costas?


Foge! A seta…

Corre… A seta…

O futuro...

corre.

Corre!


Corre a galope centauro,

contorna, outra vez, a estrela

que a própria vida é quem corre.

Corre!

Corre!


Antes que a seta lançada

girando te atinja o flanco

e do passado, sejas para sempre manco

desse futuro que houvera projetado.


Corre!

Corre!

Que a vida corre.


A vida é um correr

que não abranda.

(Mas lembra de fazer,

enquanto a terra gira,

do teu próprio correr

uma ciranda.)

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Antônia, ou as formas da saudade




O que vai com quem se vai? E o que permanece? Essa pergunta – dolorosa e indigesta – sempre nos ocorre quando nos despedimos de alguém a quem amamos. Há poucos dias, nos despedimos de dona Antônia, a vovó Tonha que nos deixou aos 88 anos. Os filhos, netos e bisnetos somos parte do que fica: seus descendentes. Para o adeus, estávamos lá, meio incrédulos da morte, mesmo cientes de que sua saúde se deteriorava; mesmo sabendo do risco da cirurgia – no entanto, inevitável – pois esperávamos que ela, miraculosamente, nos surpreendesse, como de outras vezes. Mas o coração, cansado, dessa vez não resistiu.

Conversar com ela era visitar uma época em que as coisas eram tanto mais simples quanto mais difíceis. As longas jornadas a cavalo para ir até a cidade eram sempre objeto de relatos minuciosos ou então os trabalhos árduos na fazenda, compensados por quitandas e doces que eram guardados em enormes balaios e tachos cujas dimensões ela frisava com um gestual todo dela: um grande arco com os braços abertos e os olhos arregalados, seu modo de ênfase.

Ficam essas histórias, muitas que ela repetia e repetia: as lembranças da menina e moça, filha caçula de fazendeiro abastado que ia para a casa das irmãs mais velhas, sob o pretexto de ajudá-las com seus filhos recém-nascidos, para poder frequentar, escondida da mãe bravíssima, os bailes da época (sua nota de rebeldia). Falava orgulhosa do par de brincos de ouro que ela herdou dessa mãe (e que usou até o fim) e dos belos e longos cabelos, muito pretos, usualmente trançados – hidratados a banha de porco! – objeto de inveja das cunhadas que diziam que ela devia cortá-los: “Não seja boba. O que você tem elas não têm. As orelhas furadas e esses cabelos que ainda matam um!” – flertava um vizinho e ela contava e ria-se. Depois de casada, ela efetivamente cortou aquelas longas tranças, mas as manteve guardadas numa caixa por anos, até que um dia meu avô as vendeu: haviam ficado para trás os tempos de fartura. Foi por essa época que ela passou a costurar para ajudar a criar os nove filhos. E ela apontava para a velha máquina de costura e contava dos muitos vestidos, coloridos e rodados, que ela fez para as ciganas que vinham em fila à porta de sua casa.

Mas seria engano dizer que ela vivia no passado. Jamais perdeu a invejável lucidez, nem mesmo em meio a grande dor, como quando meu avô faleceu, ou, bem mais recentemente, quando ela perdeu dois filhos em um intervalo de poucos meses. Só se queixava, às vezes, de uma tristeza que ela mal sabia nomear: “Parece que tem uma água empoçada na minha cabeça.” E nós, engasgados, dizíamos que ela podia chorar, que ela devia, como se houvesse suficiente choro para escoar essa dor ali estancada. E às vezes ela chorava. Discretamente, como sempre viveu.

Vovó Tonha sabia do rumo de cada um dos netos e bisnetos, pedia notícias e rezava por nós os seus terços diários. Também gostava de assistir ao jornal, mas apenas para ver a previsão do tempo, como se a coisa mais importante do mundo fosse saber se choveria ou não no dia seguinte. Perdeu esse interesse nas últimas semanas. Talvez fosse um presságio.

Mas, das suas histórias, a minha favorita era a de quando ela acreditou que havia chegado o fim dos tempos. Estavam na roça, ela e os empregados da fazenda, quando ouviram trombetas e viram uma cruz rasgando os céus. Prostraram-se de joelhos, entre choro e preces. Foi a primeira vez que viram um avião. Ela contava e ria, porque, afinal, o mundo não havia acabado naquele dia. Ou será que havia – me pergunto. Afinal, o mundo dela e o nosso, não estão sempre acabando, um pouco a cada dia? Não é isso que se perde, a vida que se escorre, com o mudar das coisas?

A vida, o que é, quando termina? É talvez como aquele par de tranças que um dia faz parte da gente, no outro a gente traz guardado numa caixa, como souvenir e prova do que já fomos, e no dia seguinte se perde para sempre… Mas, disso que se perdeu, não fica algo para o sempre dos tempos, sob a forma da memória? E ao transformar lembrança em palavra não damos permanência ao que se foi?

“Dinho, a bisa foi pro céu, mas a alegria dela ficou, né?” Minha sobrinha de cinco anos, me pergunta, tentando entender o que também eu não entendo: na morte, o que se vai e o que permanece. Tentando entender, ou me ensinar, não sei. É isso. A alegria dela fica. E a alegria dela eram essas histórias, que traremos conosco, como um pedaço inestimável dela vivendo na gente. Inestimável, aliás, é o significado do nome Antônia.

A bênção vó! Vá com Deus!




Sofrimento


Henriqueta Lisboa

No oceano integra-se (bem pouco)

uma pedra de sal.

Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.

A música, muito além
do instrumento.

Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso,

Ficou o selo, o remate
da obra.

A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.

O maravilhoso. O imortal.

O que se perdeu foi pouco.

Mas era o que eu mais amava.


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LISBOA, Henriqueta. Flor da Morte. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Sob(re) as máscaras

 


Fonte: Pixabay


Enfim… o carnaval! Conheço – todos devem conhecer – quem passe a vida em contagem regressiva por essa época em que é permitido vestir uma fantasia – ou despi-la – e botar o bloco na rua. Carnaval é tempo de exceção. Uma dose de desordem na ordem dos dias. Tempo de subversão das convenções, de relaxamento de imposições e posições sociais, de suspensão das regras. Como se houvesse uma lei não escrita e a todos imposta onde estivesse expresso que àqueles que andarem na linha o ano todo será dado o direito a cinco dias anuais de desvio. E nessa bem-vinda pausa, lá está Sua Majestade, habitualmente tão cioso de seu vetusto lugar no mundo (que palavras como vetusto e cioso foram feitas para uso Real), lá está ele no meio do povo, vestido de bobo da corte, comendo farofa com a mão, liberto do peso da coroa (que o poder, quando levado a sério, também tem seus ônus e não apenas benesses), e a coroa, a vemos na cabeça do bobo da corte. Por cinco dias apenas. Depois, voltamos à ordem. É claro que no país do carnaval a coisa pode ser diferente pois às vezes o bobo da corte é o próprio rei. Impossível não lembrar das palavras do diplomata Carlos Alves de Souza, erroneamente atribuídas ao General De Gaulle: “Le Brésil n’est pas un pays serieux!”. Não, o Brasil não é um país sério.

Nunca faltou quem considerasse o resto do ano apenas o tedioso intervalo entre um carnaval e o seguinte – com direito a tantos carnavais extemporâneos quantas sejam as semanas do ano, para ajudar a passar o tempo. Da minha parte, sempre fui mais do Bloco do fica em casa, oportunidade para pôr em dia os filmes do Oscar. Mas depois de dois anos em casa, estamos nós nos perguntando que fim levou a festa? E até mesmo os mais carrancudos militantes antifolia – dentre os quais, registre-se, não me incluo – têm sentido falta do carnaval, nem que seja para reclamar dele.

Neste carnaval, pelo segundo ano seguido (ou terceiro, que já perdi a conta) nem o bobo, nem o rei: quem ostenta a coroa – que aliás lhe dá nome – é o Coronavírus. E a folia de novo foi adiada. Não vai ser agora que veremos as ruas tomadas por gente em festa. Se por um lado serão postergados (até quando?) os grandes festejos públicos, por outro, multiplicam-se os carnavais particulares, como aquelas comemorações de outra época, os bailes de mascarados de inspiração veneziana.

E por falar em máscaras, por causa do vírus, todos nos vimos forçados a desfilar com elas, fora do carnaval. Máscaras nada divertidas, leia-se, com a nobre finalidade de proteção (própria e dos outros), embora se possa argumentar que toda máscara é essencialmente de proteção, mesmo aquelas que são adereços de fantasia. Lembremos que fantasiar tem duas acepções. Em um sentido abstrato, fantasiar significa devanear, sonhar, realizar imaginariamente alguma coisa. Por outro lado, a forma pronominal do verbo – fantasiar-se – tem um sentido concreto e significa vestir-se com uma roupa não habitual ou convencional, disfarçar-se. Nessa ascepção, a máscara é parte essencial da fantasia, pois protege o rosto e, com ele, a própria identidade de quem a usa. É assim que, por exemplo, um cidadão de bem, devidamente fantasiado, pode realizar suas mais loucas fantasias, sem o risco de ser reconhecido por um colega de firma, um vizinho do condomínio ou um confrade da igreja – todos eles também igualmente mascarados para os mesmos orgiásticos fins. Protegida a identidade pela máscara, o que era apenas fantasia – uma ideia contrária às leis ou convenções sociais – pode realizar-se concretamente sem que o indivíduo sofra as consequências ou sanções por sua ação. Não é por outro motivo que os vilões e heróis da ficção estejam, quase sempre, mascarados. Aliás, um outro modo de realização da fantasia é a ficção que nada mais é do que uma forma concreta e compartilhável de fantasia. A graça das obras de ficção (sejam os filmes, sejam os livros) está em nos identificarmos com a fantasia de quem as criou. E é da ficção que vem este valioso aprendizado: quando alguém posa publicamente de herói, talvez esteja apenas usando uma máscara para ocultar vilanescas intenções (qual era mesmo aquele filme em que um juiz corrupto, celebrado como uma espécie de super-homem, cometia sistemáticas ilegalidades com políticos e escusos fins?)

Fica sempre a pergunta: quem é a pessoa por trás da máscara? Lembremos, a palavra pessoa deriva persona que era a palavra usada para designar as máscaras usadas pelos atores no teatro clássico..Afinal, a máscara esconde ou revela? Ao ocultar a parte mais visível da personalidade ela não acaba mostrando algo que, no feijão com arroz dos dias, se mantém oculto por força das leis, das convenções ou simplesmente das conveniências? Estaria, nesse sentido, o mascarado mais desnudo que o cidadão de bem? Ou seria o cidadão de bem, cordial e honesto, esse sim, uma máscara ostentada ano afora, razão de haver bandidos fantasiados de farda, criminosos de juristas, um palhaço de presidente…? As máscaras mostram o que elas camuflam, seu oposto. E as máscaras de proteção contra o Covid, o que revelam sobre o caráter, a inteligência (ou a falta deles) de quem não as usa?

Muitas perguntas para um carnaval sem folia. Enquanto ele não vem, permito-me o carnaval em pequenas doses: ficção de cada dia. Em espera, fantasio um outro país, que volte a levar a sério os seus graves problemas e trate com a merecida dignidade seu povo. Isso sim seria motivo de festa nas ruas, não seria? Deixemos esse carnaval em suspenso. Por alguns meses, ao menos. Até, outubro ou novembro, quem sabe… E fiquemos com esse poema que Fernando Pessoa, ou Persona, escreveu sob a máscara de Álvaro de Campos:

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara e tornei a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

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Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Carlos, a pedra e o caminho

Imagem: PDPhotos por Pixabay

Há um século, ao longo de cinco dias naquele fevereiro de 1922, aconteceu a Semana de Arte Moderna, marco simbólico do movimento que rompeu com toda uma série de velhas convenções artísticas e culturais. E esta crônica deveria ser sobre o centenário do movimento modernista que, entre muitos méritos teve o de promover o reconhecimento e a valorização da cultura nacional (coisa que pseudonacionalistas de hoje parecem abominar), mas no meio do caminho tinha uma pedra.

Tomo de empréstimo o verso inicial do mais polêmico poema do modernismo o qual rendeu a seu tímido autor diversos louvores e apedrejamentos públicos que ele coligiu com a burocrática paciência de poeta-funcionário no livro Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema. Críticos já discorreram fartamente sobre as múltiplas interpretações desse poema, lembrando que a pedra metaforiza qualquer forma de obstáculo, impasse ou bloqueio, tornando-se um verso incontornável (perdoem-me o trocadilho) que de tão célebre  se converteu numa espécie de dito popular, significando, portanto, mais que mero objeto rochoso com o qual alguém se depara. No mesmo sentido, caminho representa metaforicamente qualquer coisa que se tenha planejado e não necessariamente o percurso ou trajeto físico do ponto A ao ponto B. Assim, eu poderia ter começado esta crônica dizendo que planejava escrever sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, mas algo impediu que eu o fizesse, de onde me socorreram o poeta de Itabira e seu rochedo metafórico: No meio do caminho tinha uma pedra, deixando as perguntas: que pedra? qual caminho? Mas aqui pedra e caminho têm um sentido bem mais concreto.

Eu ordenava mentalmente a manhã de domingo, entre o pão e o queijo, entre o trabalho e a preguiça, entre escrever a crônica e assistir a uma série, quando, no meio do caminho, a pedra. Literalmente pedra. Literalmente caminho. Entre o rim direito e a bexiga. Anunciou-se pela dor, velha conhecida que de repente me mandava um oi sumido, quanto tempo? Vinte anos, de fato, desde que fomos apresentados, no meu segundo semestre de Psicologia quando a batizei de Adélia, em singela homenagem a uma professora cujas aulas divertidíssimas me causavam cólicas de tanto rir. Mas esta outra Adélia, que do nada se anunciava com alarde (parente em visita surpresa), não tinha a menor graça. Visitante inoportuna e inesperada. E porque eu estava sozinho e como não tinha analgésico, tive de aturar seu inconveniente estardalhaço até que, cansada, desse uma trégua para que eu pudesse providenciar o poético remédio: Butilbrometo de escopolaprina. Repita esse nome em voz alta e diga se é ou não um decassílabo perfeito? Mas, talvez, apenas quem já teve uma dessas cólicas – comparam-nas à dor do parto – saiba apreciar adequadamente a poética sonoridade dessas sílabas, o que me leva de volta à pergunta: o que é poesia? E o que ela se tornou a partir daquela Semana de Arte Moderna, ocorrida há um século, se até No meio do caminho tinha uma pedra – vejam que absurdo! passou a ser rotulado como tal? O poema de Carlos D. foi frequentemente citado pelos críticos do modernismo como um exemplo da decadência e antilirismo do movimento, mas me desvio do assunto como se contornasse um obstáculo.

Não era mais dessa pedra que eu falava. Nem desse Carlos. Volto a minha manhã de domingo e cito a Adélia (Prado, não a pedra): De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo, outros versos aos quais recorro para dizer que, às vezes, pedra é pedra e caminho é caminho ou, para citar Freud, querendo afastar conotações fálicas para seu vício: Às vezes um charuto é apenas um charuto. Devidamente medicado, pude esperar até o dia seguinte quando me vi diante de Carlos P., urologista, que a partir de uma tomografia constatou o que eu visceralmente intuía: tinha uma pedra no meio do caminho.

Se eu começasse esta crônica dizendo que No meio do caminho tinha uma pedra de 6 mm exatos, talvez um leitor menosprezasse meu desvio e me tomasse por exagerado, pois a um obstáculo desse tamanho não se deveria dar, literalmente, a menor importância. Isso porque temos péssimo hábito de subestimar as pedras no caminho dos outros. Mas penso que cada qual sabe o quanto incomodam as pedras em seu sapato (ou rim, conforme o caso) e estas não se medem pelo tamanho, mas pelo inconveniente que causam e pelo quanto nos desviam do nosso planejado caminho. Por exemplo, naquela segunda-feira eu me dedicaria à mais antipoética das missões burocráticas incumbidas ao funcionário-poeta que também sou: a minuciosa revisão de um ato normativo, trabalho que requer, como se pode imaginar, o cuidadoso policiamento das palavras, olhá-las com desconfiança de todos os ângulos imagináveis, prender os significantes em rígidas cadeias sintáticas e semânticas para evitar qualquer desvio de significado, ou seja, o exato oposto da tarefa de um poeta. Eu deveria apresentar o resultado desse trabalho ao Sr. Carlos A. (o novo diretor, que ainda não tinha entrado nessa história), mas, como já disse, aconteceu-me a pedra. E poucas horas depois eu aguardava Dr. Carlos P. na sala de cirurgia.

Assim é a vida, num dia você faz planos, no outro a pedra. Se eu imaginasse esse desenrolar teria me preparado para a ocasião, teria me vestido bem, para me despir mais apropriadamente, teria passado um perfume ou aparado os pelos, da barba, ao menos, para causar melhor impressão. Na asséptica sala de cirurgia se ensaiava um evento. Cinco pessoas (por que tantas?) esperávamos o Dr. Carlos P. Deitado, minha nudez provisoriamente velada por um modesto lençol, eu me perguntava quem seria o protagonista do espetáculo. Eu? O cirurgião? A pedra? Enquanto o esperava, antes que o anestesista me colocasse em meu devido papel de mero objeto cênico, eu ouvia uma das coadjuvantes narrar em detalhes seu intenso fim de semana regado a muito álcool (não em gel, registre-se) devidamente resfriado num copo térmico Stanley e nisso eu torcia mentalmente para que o papel dessa auxiliar, provavelmente de ressaca, fosse bem, bem coadjuvante mesmo, de preferência, que ela sequer chegasse perto de Adélia e de suas adjacências, menos preocupado eu estava com a pedra que com o caminho que ela tinha pela frente, entenda-se. E tentava exercitar a meditação, concentrando-me em respirar e buscando aquele caminho do meio de que fala o zen budismo, forma de se distanciar do espetáculo tragicômico do pensamento e das coisas do mundo.

Correu tudo como o planejado, dizia Dr. Carlos P., horas depois quando, já no quarto, me entregou Adélia: um belo cristal de oxalato de cálcio no qual creio ter visto certos traços meus, mas pode ter sido efeito da anestesia. Na semana que vem, retiramos as outras duas, que eu havia esquecido de dizer que a tomografia revelou que Adélia tinha duas irmãs, adormecidas no mesmo rim, eram trigêmeas (ou trigemas) e era aconselhável arrancá-las de seu sono mineral e renal antes que despertassem por si mesmas e se pusessem no meio do caminho. Hilda e Cecília, batizei as outras duas.

Hilda prometia brevidade, mas guardava secretos venenos: Nela despenco: pedra mórula ferida. / É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. (Hilda Hilst). Cecília também alertava para sua enganadora suavidade: Eu vi as pedras nascerem, / do fundo do chão descobertas./ Eram brancas, eram róseas,/ – tênues, suaves pareciam, / mas não eram. (Cecília Meireles). Melhor mesmo removê-las.

Na semana seguinte, mesma cena, outros personagens, salvo por mim mesmo e pelo Dr. Carlos P. E já que eu sabia o que me esperava, poderia ter me preparado melhor, ter passado um perfume, me aparado, etc., mas a intimidade adquirida no primeiro encontro me deixou meio relaxado, como esses namorados que com pouco tempo se mostram relapsos. Correu tudo como planejado, aliviou-me o Dr. Carlos P., quando me dava alta.

Resumo da história: Carlos são muitos, como são muitas as pedras, assim como as Adélias que podem causar cólicas de rir ou de rim, no último caso, quando pedra é pedra mesmo, como já dizia a Adélia (Prado, não a pedra, repito). Dr. Carlos P. livrou-me das pedras (literais, não metafóricas) que ficaram no meio do caminho (metafórico e literal) entre mim e o antipoético trabalho que deveria entregar ao Sr. Carlos A., antipoético, aliás como o poema modernista daquele outro funcionário público, Carlos D., publicado originalmente em mil novecentos e lá vai pedrada.

Me recupero muito bem, obrigado e compartilho a recomendação do Dr. Carlos P.: água, muita água, que água mole em pedra duraevita a formação de cálculo (o que é uma solução, e não uma rima, mas isso é outro poema).

Deixo, por fim, esses versos que escrevi há alguns anos e que fizeram parte da exposição Poesia Hoje, no Museu da Língua Portuguesa, em 2015:

Zen


No meio

da pedra

tinha

um caminho.


Tinha

um meio

no meio

da pedra.


Um caminho

do meio

no meio

da pedra.

domingo, 30 de janeiro de 2022

O ano do boi



Com estrondosos (mas vacilantes) fogos de artifício celebramos o fim de 2021, como se quiséssemos, à força de seu estampido, acordar de um pesadelo. Já não era sem tempo! suspiramos aliviados, comemorando a mudança de dígito do calendário. Isso porque acreditamos, ou assim queremos, que há cabalísticas repercussões nessa simples troca de algarismos.

Seguem-se inevitáveis reflexões sobre a continuidade ou descontinuidade do tempo. O que de fato termina com o ano que acaba? O que permanecerá dele, como herança ou fardo? E o que nele ficará sepultado, como memória ou esquecimento? Qual a novidade que esperamos que dê sentido ao novo que adjetiva o ano que se inicia? Distraídos por tais perguntas quase nos esquecemos – talvez o façamos de propósito – que a forma como dividimos o tempo é mero artifício contábil. Para lembrá-lo é suficiente recordar que há outros calendários com seus respectivos anos novos a brotar inesperados no meio de nossas agendas. Sem citar o calendário Maia, associado a um fatídico fim do mundo (talvez já concluído), recordemos que o ano 4719 do calendário chinês só acaba em 31 de janeiro de 2022. Para o horóscopo chinês, o ano que começou em 12 de fevereiro de 2021 foi o ano do boi.

Talvez a emblemática imagem-arauto do ano bovino, lá pelos idos de janeiro de 2021, tenha sido a de um dos invasores do Capitólio ornamentado com um par de chifres e o rosto pintado nas cores da bandeira americana, bradando (ou seria berrando?) contra a derrota de Donald Trump. As cenas da invasão da sede do congresso americano tinham qualquer coisa grotesca desses filmes catástrofe tão ao gosto de Hollywood (com provável alusão apocalíptica ao calendário Maia, devidamente recalibrado). Parecia mentira, mas era verdade. E foi entre verdades que pareciam mentiras e mentiras veiculadas como verdades que andamos às cabeceadas neste ano taurino.

Não foi o fake boi da cara preta da cantilena de ninar (ou de aterrar) que nos perturbou o sono nesse ano. Quem frequentou nossos pesadelos foi de novo a Covid, metamórfica como os deuses da Grécia antiga onde foi buscar signos com que batizar suas novas formas. Bebeu no alfabeto grego, parindo a variante alfa, letra que aliás deriva do fenício onde sua equivalente representa iconicamente uma cabeça de touro. Outras variantes desfilaram em nosso pesadelo – beta, gama, delta... ômicron – um rebanho inteiro em massacrante marcha.

E por falar em pesadelo, lembremos o daquele faraó narrado no Gênesis  (o livro, não o folhetim). Sete vacas gordas devoradas por sete vacas magras. A fábula bíblica nos conta que o governante consultou o maior especialista na matéria, um tal José, que corretamente decifrou o significado do presságio: sete anos de fartura sucedidos por igual período de escassez. Confiando na palavra do especialista, o faraó encarregou José de tomar as providências necessárias contra a carestia vindoura, o que fez com que o reino atravessasse, sem maiores sobressaltos, os tempos de penúria. Menos sorte tivemos nós, às voltas com um presidente negando a óbvia verdade proclamada em coro pelos especialistas. Negando ou negaceando? Diz o Houaiss que negacear é valer-se de “artifício com que se ilude alguém; falsa promessa, mostra ilusória; engano, logro, estratagema.” E agora, José?

Ruminando falsas notícias, assistimos (pretérito perfeito e presente do indicativo) aos estragos desse discurso obscurantista repetido por um séquito ruidoso, pejorativa ou apropriadamente rotulado como gado. De seu cercadinho (ou seria curral?) mesmerizado pela voz do capitão como se cantasse obediente: “Toca o berrante, seu moço, que é eu pra eu ficar ouvindo”, como na letra de certa música imortalizada pelo octogenário ex-deputado federal que ganhou as manchetes no ano findo por incitar uma invasão do Supremo Tribunal Federal.

Mas voltemos à vaca fria; ou às vacas magras que andaram à solta pelo país. Um espantoso aumento do desemprego e da miséria nos relegou a indigesta e emblemática imagem de uma fila de pessoas disputando ossos. O país voltou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas. Enquanto isso, num outro Brasil, a estátua de um Touro Dourado, que bem poderia ter sido o bezerro de ouro citado em outra parte da Bíblia, foi inaugurada para adoração pública em frente ao prédio da B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Num ano de economia minguante e miséria crescente, a estátua celebrativa tinha qualquer coisa de lunática. Não demorou para que a escultura de Rafael Brancatelli, inspirada pelo touro de bronze que orna a entrada da bolsa de Wall Street fosse retirada da rua XV de novembro. Em seu lugar, por um breve período, desfilou a instalação batizada de “Vaca Magra”, da artista plástica Márcia Pinheiro.

Nesse ano do boi quem seguiu em desabalada carreira foi o projeto antiecológico anunciado pelo agora ex-ministro do Meio Ambiente: uma boiada inteira pisoteando e fazendo de pasto a legislação ambiental e os biomas do país. Aliás, o patrocínio de um banco privado a uma iniciativa global denominada Segunda sem Carne, cujo objetivo é conscientizar sobre o impacto ecológico da pecuária e incentivar a redução de consumo do alimento, levou criadores de gado e de caso, em protesto, à porta de agências do aludido banco. Os manifestantes enfurecidos defenderam o consumo da carne bovina “de segunda a segunda”, parecendo ignorar que a substancial redução do alimento no prato dos brasileiros não teve a ver com uma consciência ecológica insuflada pela publicidade oportunista e sim com o fato de a economia pátria, como a vaca, ter ido para o brejo.

Para completar nosso périplo, voltemos aos astros para lembrar que quem recentemente foi comer grama pela raiz não foi outro senão o astrólogo, ideólogo e guru do bolsonarismo (ou seria boisonarismo?) Olavo de Carvalho, aliás um taurino. 

E esse foi o ano do boi. Foi? Será que acabou de verdade? Ou continua? E, afinal, quando começou? E quando poderemos dá-lo por encerrado? – nos perguntamos ansiosos, enquanto, placidamente, Um boi vê os homens:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade. [1]


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[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Um boi vê os homens. In: ______. Nova Reunião: 23 livros de poesia. 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 223-224. 


terça-feira, 7 de julho de 2020

Pedagogia



O diabo do menino plantava medo no pomar. Estilingue na mão, fazia mira para matar e regozijava dos minúsculos corpos, contorcidos no solo.
Ralhar, de nada servia – mais parecia aumentar-lhe o gozo. Zombava, até. Não houve modo de lhe fazer entender-se irmão das aves do céu, criaturas que somos do mesmo Deus. Seu coração era duro, como as pedras com que espalhava morte aos seres alados.
Um dia, chegou-se-me aos prantos, o olho ferido pelo seixo saído pela culatra.
Foi assim que perdeu a vista.
Até me dói ver-lhe o rosto, para sempre disforme. Mas – que me corrija o Altíssimo – não carrego culpa por ter lhe desejado o mesmo mal que semeava às fartas. 
Ainda que tivesse lhe sabotado a arma.


quarta-feira, 12 de julho de 2017

À espera

Num gesto involuntário, consulta o celular: 03:19 pm. A ponta do pé direito apoiada no chão enquanto o calcanhar oscila como se seguisse o ritmo de uma música oculta. Quase um tremor. As mãos - é preciso ocupá-las - ajeitam o saleiro e o porta-guardanapos. O garçom se aproxima. Se ele perguntar de novo se já escolhi...

- Com licença, - intervem entre os dentes amarelecidos - o senhor já escolheu?

- Ainda não.

- Fique à vontade - diz e se afasta, olhando de soslaio.

Ele verifica, novamente, o telefone: 03:21 pm. Talvez, um atraso. Marcaram às três. Mas, como não conhecia o lugar, e como o restaurante ficava do outro lado da cidade, e como não conseguia pensar noutra coisa, chegara cedo demais. Às duas e trinta e quatro, sentou-se junto à mesa de onde melhor se podia ver a entrada. “Dadas as circunstâncias, é preciso discrição. Espero que você compreenda”, dizia o e-mail. Ele assentiu, contrariado: poderiam, ao menos, ter trocado os telefones.

O sinete sobre a porta anuncia uma chegada. Desenha-se contra o vidro fosco um vulto. Respiração e pulso em descompasso: ele se apruma na cadeira e vê entrar uma jovem de cabelos louros, aéreos. Ela tem a sua idade, vinte e poucos, usa um vestido azul celeste na altura dos joelhos, estampado com o que parecem ser minúsculas borboletas, ou, talvez, pássaros ou, talvez, aviões. Um leve casaco branco paira sobre seu antebraço esquerdo. Atrás dela, a mão de um homem de uns quarenta anos flutua sobre seu ombro direito. O jovem desvia o olhar. Por um instante, quis que fosse ela a pessoa a quem aguardava, não porque a tivesse desejado, mas, apenas, para que a espera chegasse ao fim.

Seu olhar recai sobre a mesa. Dá-se conta de que, no lugar onde estivera o saleiro, restou o testemunho de um círculo feito de minúsculos cristais brancos. Pressiona o indicador contra a arenosa matéria e experimenta sua aspereza com a polpa macia do dedo. O sal se dissolve, saturando o suor da mão. Quase pode saber-lhe o gosto.

Outra vez, a porta se abre e os olhos, em resposta, procuram. Pulso, de novo, em tropel: um vulto por trás do vidro. Sem dúvida, é a mão de um homem que segura a porta. Talvez seja ele. Mas, quem surge é uma senhora envolta num casaco terroso, pesado demais para a estação, quase da mesma cor dos cabelos artificialmente castanhos. Um cachecol areia lhe escorre dos ombros. O homem que sustentava a porta, entra logo após. Ele usa um terno marinho imune às modas. Braços dados, o casal passa por ele, deixando atrás uma onda de jasmim e almíscar.

O jovem se abandona na cadeira e esvazia os pulmões, vencido. Folheia o cardápio que já sabe de cor e lê, escandindo as sílabas, como quem busca, na cabala do acaso, explicação ou resposta.

- Es-con-di-di-nho... vin-te-e-três.

Atrás dele, uma mulher ri. O rosto lhe queima e os ouvidos se aguçam à procura da ameaça. Uma segunda mulher dispara:

- Eu juro! Ele ainda teve a cara de pau de me ligar?!

Gargalhadas, cúmplices. Não era ele, afinal, o alvo. E por que seria? Ninguém o sabia ali. Ninguém o notara. Salvo, por certo, o garçom que de novo o rondava.

O soar do sino anuncia um novo cliente. O homem, em quem ele busca traços familiares, tem perto de cinquenta anos, veste um blazer cinza sobre uma camisa palha. Cinza sobre palha, ele para e procura. O jovem sustém a respiração, ajeita-se na cadeira e ergue, timidamente, a mão direita. Do lado oposto, caminha uma mulher que acolhe o recém-chegado com um beijo. Atrás do jovem, explode nova risada da qual ele não tem certeza de não ser o alvo. Seu rosto arde.

- Pois não? - aproxima-se o garçom com o sorriso amarelo, em desalinho. Ele leva alguns segundos para dar-se conta de que o braço permanecera erguido.

- Uma água com gás - gagueja, em improviso.

- Com gelo?

- Sem.

O atendente se afasta e ele volta a ficar sozinho. Mais do que antes. Mais do que nunca. Não consegue evitar e consulta o telefone: 03:45 pm. O homem, que ele não conhece, não veio; não virá. Já não sabe se há décadas ou há horas o espera.