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Há um século, ao longo de cinco dias naquele fevereiro de 1922,
aconteceu a Semana de Arte Moderna, marco simbólico do movimento que
rompeu com toda uma série de velhas convenções artísticas e
culturais. E esta crônica deveria ser sobre o centenário do
movimento modernista que, entre muitos méritos teve o de promover o reconhecimento e a valorização da cultura nacional (coisa que
pseudonacionalistas de hoje parecem abominar), mas no meio do
caminho tinha uma pedra.
Tomo
de empréstimo o
verso inicial
do mais
polêmico
poema
do modernismo o
qual rendeu
a seu tímido autor
diversos louvores
e apedrejamentos públicos
que
ele coligiu
com a
burocrática paciência
de poeta-funcionário no
livro
Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema.
Críticos
já
discorreram
fartamente
sobre
as
múltiplas interpretações desse poema, lembrando
que a pedra
metaforiza
qualquer forma de obstáculo,
impasse ou bloqueio,
tornando-se
um verso
incontornável (perdoem-me o
trocadilho) que de tão
célebre se converteu numa espécie de dito
popular, significando,
portanto,
mais que mero
objeto rochoso com
o qual alguém se depara. No
mesmo sentido, caminho
representa metaforicamente qualquer coisa
que se tenha planejado e não
necessariamente
o percurso ou trajeto
físico do
ponto A ao
ponto B. Assim, eu
poderia ter começado esta
crônica dizendo que planejava
escrever sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, mas algo
impediu que eu o
fizesse, de onde me socorreram o poeta de
Itabira e seu rochedo
metafórico: No meio do caminho tinha uma
pedra, deixando
as perguntas: que pedra?
qual
caminho? Mas aqui
pedra e caminho têm
um sentido bem mais concreto.
Eu
ordenava
mentalmente a
manhã de domingo,
entre o pão e o queijo,
entre o
trabalho e
a preguiça, entre escrever a
crônica e
assistir a
uma série, quando,
no meio do caminho, a
pedra. Literalmente pedra.
Literalmente caminho.
Entre
o rim direito
e a bexiga. Anunciou-se pela
dor, velha conhecida que
de repente me mandava um oi sumido, quanto tempo?
Vinte anos, de fato,
desde que fomos apresentados,
no meu
segundo semestre
de Psicologia
quando a
batizei
de Adélia, em singela
homenagem a uma professora cujas
aulas divertidíssimas
me causavam
cólicas de
tanto rir. Mas esta
outra Adélia,
que do nada se
anunciava com alarde (parente
em visita surpresa),
não tinha a menor graça.
Visitante inoportuna
e inesperada. E porque eu estava sozinho e como
não tinha analgésico, tive
de aturar seu
inconveniente
estardalhaço até
que, cansada, desse uma
trégua para que eu pudesse
providenciar o
poético remédio:
Butilbrometo de escopolaprina. Repita
esse nome em voz alta e diga se é
ou não um decassílabo
perfeito? Mas, talvez,
apenas quem já teve uma dessas cólicas – comparam-nas
à dor do parto – saiba
apreciar adequadamente a
poética sonoridade
dessas sílabas,
o que me leva de
volta à pergunta: o
que é poesia? E o
que ela se tornou a partir
daquela Semana de Arte
Moderna, ocorrida
há um século, se até
No meio do caminho tinha uma pedra – vejam
que absurdo! – passou
a ser rotulado
como tal?
O poema de Carlos D. foi
frequentemente citado pelos críticos do modernismo como um exemplo
da decadência e
antilirismo
do movimento, mas
me desvio
do assunto como se
contornasse um obstáculo.
Não
era mais
dessa pedra que eu falava.
Nem desse Carlos. Volto
a minha manhã de domingo e
cito a Adélia (Prado,
não a pedra):
De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo
pedra mesmo, outros
versos aos quais recorro para
dizer que, às vezes, pedra é
pedra e caminho é caminho ou, para citar Freud, querendo
afastar
conotações
fálicas para seu vício: Às vezes um charuto é
apenas um charuto.
Devidamente
medicado, pude esperar até o dia seguinte quando me vi diante de
Carlos P., urologista, que
a partir de
uma tomografia constatou o que eu visceralmente
já intuía:
tinha uma pedra no meio do caminho.
Se eu começasse esta
crônica dizendo que No meio do caminho tinha uma pedra
de 6 mm exatos,
talvez um leitor menosprezasse
meu desvio
e me tomasse por exagerado,
pois a
um obstáculo desse
tamanho não
se deveria dar, literalmente,
a menor importância.
Isso porque temos
péssimo hábito de
subestimar as pedras no caminho dos outros. Mas
penso que
cada qual sabe o
quanto incomodam as pedras em
seu sapato (ou rim, conforme o caso) e estas
não se medem pelo tamanho, mas pelo inconveniente
que causam e
pelo quanto nos desviam do nosso
planejado caminho.
Por exemplo, naquela segunda-feira eu me dedicaria à
mais antipoética das missões
burocráticas incumbidas
ao funcionário-poeta
que também
sou: a minuciosa
revisão
de um ato normativo,
trabalho que requer, como se
pode imaginar, o cuidadoso
policiamento das palavras,
olhá-las com desconfiança
de todos os ângulos
imagináveis,
prender os significantes
em rígidas cadeias sintáticas e
semânticas para evitar
qualquer desvio de
significado, ou seja, o exato
oposto da tarefa de um
poeta. Eu deveria apresentar
o resultado desse trabalho ao Sr. Carlos A. (o
novo diretor,
que ainda não tinha entrado
nessa
história), mas, como já
disse, aconteceu-me
a pedra. E poucas horas depois eu aguardava
Dr. Carlos P. na
sala de cirurgia.
Assim
é a vida, num dia você faz
planos, no outro a
pedra.
Se
eu imaginasse
esse desenrolar
teria me preparado para
a ocasião, teria me
vestido bem,
para me despir mais
apropriadamente, teria
passado um perfume
ou aparado os pelos,
da barba, ao menos, para
causar melhor impressão.
Na asséptica
sala de cirurgia se ensaiava
um evento. Cinco pessoas (por
que tantas?) esperávamos o Dr. Carlos P. Deitado, minha
nudez provisoriamente velada
por um modesto lençol, eu me
perguntava quem seria
o protagonista do
espetáculo.
Eu?
O cirurgião? A pedra?
Enquanto o
esperava, antes que o
anestesista me colocasse em
meu devido papel de mero objeto cênico,
eu ouvia uma das coadjuvantes
narrar em detalhes seu
intenso fim de semana regado
a muito álcool (não em gel,
registre-se) devidamente
resfriado num copo térmico
Stanley e
nisso
eu
torcia
mentalmente para que o papel
dessa auxiliar, provavelmente
de ressaca,
fosse bem,
bem coadjuvante mesmo,
de preferência, que ela sequer chegasse perto
de Adélia
e de
suas adjacências, menos
preocupado eu
estava com a pedra que com o
caminho que ela tinha pela
frente, entenda-se.
E tentava
exercitar a meditação,
concentrando-me
em respirar e buscando
aquele caminho do meio de
que fala o zen budismo,
forma de se distanciar
do espetáculo tragicômico
do pensamento e das
coisas do mundo.
Correu tudo como o
planejado, dizia Dr.
Carlos P.,
horas
depois quando, já no quarto,
me entregou
Adélia: um belo cristal de oxalato de cálcio no
qual creio ter visto certos traços meus, mas pode ter sido efeito da
anestesia. Na
semana que vem, retiramos as outras duas, que
eu havia esquecido de dizer que
a tomografia revelou que Adélia
tinha duas irmãs, adormecidas
no mesmo rim,
eram trigêmeas (ou
trigemas)
e era
aconselhável arrancá-las
de seu sono mineral e renal
antes que despertassem
por si mesmas e
se pusessem
no meio do caminho. Hilda e Cecília, batizei
as outras duas.
Hilda prometia
brevidade, mas guardava
secretos venenos:
Nela despenco: pedra mórula ferida. / É crua e dura a
vida. Como um naco de víbora. (Hilda
Hilst). Cecília também
alertava
para sua
enganadora suavidade: Eu vi as pedras nascerem, / do fundo
do chão descobertas./ Eram brancas, eram róseas,/ – tênues,
suaves pareciam, / mas não eram. (Cecília
Meireles). Melhor mesmo
removê-las.
Na
semana seguinte, mesma
cena, outros
personagens, salvo por mim
mesmo e pelo Dr. Carlos P. E já que eu sabia o que me esperava,
poderia ter me preparado
melhor, ter passado um
perfume, me aparado, etc.,
mas a
intimidade adquirida no
primeiro encontro me deixou meio
relaxado, como esses
namorados que com pouco
tempo já se
mostram
relapsos.
Correu tudo como planejado, aliviou-me
o Dr. Carlos P., quando me
dava alta.
Resumo
da história: Carlos são
muitos, como são muitas as pedras, assim como as Adélias que
podem
causar cólicas de rir ou de rim, no último
caso, quando pedra é pedra mesmo, como já dizia a Adélia (Prado,
não a pedra, repito). Dr.
Carlos P. livrou-me
das
pedras
(literais,
não metafóricas)
que ficaram
no meio do caminho (metafórico e
literal) entre mim e o
antipoético trabalho que
deveria entregar ao Sr.
Carlos A., antipoético,
aliás como o poema modernista daquele outro funcionário público,
Carlos D., publicado originalmente em mil novecentos e lá vai
pedrada.
Me recupero muito
bem, obrigado
e compartilho a recomendação
do Dr. Carlos P.: água, muita água, que água mole em
pedra dura… evita
a formação de cálculo (o que é uma solução, e não uma rima,
mas isso é
outro poema).
Deixo, por fim, esses
versos
que escrevi há alguns anos e que fizeram
parte da exposição Poesia Hoje, no
Museu da Língua Portuguesa, em
2015:
Zen
No meio
da pedra
tinha
um caminho.
Tinha
um meio
no meio
da pedra.
Um caminho
do meio
no meio
da pedra.